Em plena Segunda Guerra Mundial, ano de 1944, estando em Itabuna sem emprego, pego um navio cargueiro com destino a Salvador. Viagem horrível margeando o litoral para se livrar de submarinos. Esse navio balançava como se fosse uma pequena embarcação sobre ondas. Saltamos em Salvador. Quem salta no Cais do Porto e desce de um navio cargueiro como seu, sente a falta de melhor asseio, melhor preparo para receber os visitantes. Para mim que saltei com a bagagem envolta em papel de cimento estava bom até demais. Fui em direção ao Elevador Lacerda onde procurei por uma hospedaria, encontrando a uns cem metros dali. Em um casarão antigo aluguei uma cama, paguei adiantado e foi dormir, quando olhei para o colchão, estava com uma camada de pus. Coisa horrível. Pensei não ser problema e virei o lado. Estava pior. Descia as escadas e comprei um jornal forrei o chão e dormi tranquilamente. A minha surpresa só foi maior porque os jovens daquela época eram atacados de uma doença venérea – blenorragia – cuja característica era expelir pus pela uretra. Portanto ali havia estado um colega portador da “dita cuja”. Um dos motivos de minha a a Salvador era, além do emprego, procurar os postos de saúde para o tratamento, pois em Itabuna na época não havia. Logo, logo, tivemos que abandonar aquela espelunca pois o gerente quando percebeu que a gente estava comprando pão e bolacha para fazermos a refeição ali no quarto, nos proibiu de fazê-lo que só tínhamos o direito de dormir e depois “cair fora”. Fiquei alucinado. Sem dinheiro e sem apresentação foi difícil encontra um quarto para alugar. Encontramos um na Ladeira da Montanha. Como não tinha cama e nem colchão, fomos à feira de Água de Meninos e compramos duas esteiras, uma para mim e outra para o colega. Agora estávamos alojados. Salvador muito quente não precisava de cobertor. O que mais incomodava era o “quipá”, ou melhor, sarna, além da blenorragia, era o que mais incomodava, era também uma espécie de epidemia da época que atacava as pessoas de menor recursos, como no meu caso. Às vezes, não podendo dormir, eu pegava os testículos, ou melhor, o couro que os envolve, e esfregava como as lavadeiras fazem para lavar roupa: pegam o pano com as mãos e esfregam. Assim fazia eu. Quando estava nessa agonia para aliviar minha coceira ouvi uma velhinha a gritar de um quarto vizinho: “Quero mijar!”. Penalizado, eu pegava a velhinha e levava para mijar. Acontece que a velha também tinha o quipá. Não dormia a noite se coçando. Uma andar acima morava a senhora filha dessa pobre velha no maior conforto possível. Era mulher de oficial da Guarda Nacional. O casal tinha uma filha garota morena, tinha mais ou menos uns 14 anos, meiga, mimosa, bem tratada, mas eu lhe garanto que nunca visitou sua avó. Abandonada no andar inferior do prédio a gritar: “Eu quero mijar”.
Ao fim do mês pagamos a conta direitinho e fizemos uma viagem. Quando chegamos faltavam três dias para o vencimento do segundo mês. A mulher após o recebimento do dinheiro disse: “Agora eu quero o meu quarto”. Mas a dona foi categórica: “Quero o meu quarto”. Entregamos e fomos atrás de uma pensão. Ninguém nos aceitava. Com aquela bagagem embrulhada em saco de cimento eu dava até razão. Felizmente encontramos José Silva na rua do Gasômetro, 26, Calçada, que nos hospedou por quase dois anos.
Passando uns três ou quatro meses, foi visitar a velhinha da Ladeira da Montanha. Depois dos cumprimentos de praxe, perguntei por sua mãe: “A velhinha faleceu”. Respondeu com alegria estampada na face. Foi me mostrar o quarto onde ela vivia ou sofria. Aquilo que era uma desordem cheirando a mofo, agora tinha até cortina, tudo limpinho para conseguir um bom aluguel.
Quase 60 anos depois passando pelo local, parecia ouvir o clamor da pobre velhinha: “Eu quero mijar!”.
Obs: Me faz lembrar do filme “Do Mundo Nada se Leva”.
Imagens: http://mgallo.zip.net/arch2006-12-01_2006-12-15.html; http://www.cidteixeira.com.br/Template.asp?IdEntidade=293&Nivel=0002000200060001
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