5 de dez. de 2007

Cleó

Após o término da Segunda Guerra Mundial, estando morando em Salvador, rua do Gasômetro, 26, dei uma estirada a Santo Antônio de Jesus com a finalidade de melhorar a condição de vida pois vivia de vendas a domicílio.

Procurei uma pensão modesta, mas a que eu me hospedei era pequena e modesta até demais. Basta dizer que tinha de recuar a mesa de jantar e estender uma toalha no chão do barro mal batido para se fazer as refeições. Por aí se faz uma idéia.

Uma coisa gostei desse espelunca, era que ali também se hospedavam mulheres de vida livre e quando uma ou outra menstruava, a dona pedia para que dormisse na minha cama para que as colegas pudessem trabalhar na luta do pão de cada dia. Quanto a mim só restava agradecer à companhia agradável. Atolado por atolado eu já vivia.

Ou episódio que vale a pena lembrar é que eu estava muito doente com uma anemia profunda e não tinha condições de me tratar, quando lembrei-me de uma fórmula de alisar cabelos que aprendi em Itabuna, minha terra natal.

Preparei a pasta e chamei uma mocinha que passava na rua e dei uma massagem de graça com o propósito de trazer uma colega pelo preço de cinco mil-réis, a moeda da época.

Com esses trocados consegui me tratar e procurar um hospedaria melhorzinha. Lá conheci um hóspede vindo do nordeste para vender um fumo e, quando o fez, tomou umas e saiu pelas ruas a gritar: “Quarenta contos! Quarenta contos!”, isto em voz alta. Chegou na pensão e cantou a dona para a noitada. Ela não aceitou mas indicou a dona da pensão que eu tinha me hospedado. Era uma megera magra, cor escura, lá pra os seus 60 anos. Como a proposta era gorda a velha aceitou. No outro dia ouço o comentário: “Foi a noite inteira. Parava um pouco, bebia um preparado que levou na garrafa e continuava, e assim foi a noite toda deixando a velha de cama. Depois dessa façanha pagou a conta, arrumou a trouxa e se foi.

Quanto a mim voltei a Salvador e continuei minha vida até que surgiu a oportunidade de ingressar na vida pública como Auxiliar de Engenheiro, numa virada que o destino determina às vezes para melhor, o que foi o meu caso e dois anos depois viajo a Cícero Dantas como auxiliar de engenheiro para fazer uma divisão intermunicipal e, percorrendo a região, encontro o plantador e vendedor de fumo. Conheci pela voz. Perguntei ao filho do prefeito que me disse que ele era famoso na região pois preparava a “garrafada” com poderes afrodisíacos e que, as mulheres não queriam nada com ele, pois quando começava não queria mais para com aquela fúria incontida que não tinha quem agüentasse. Estava confirmado: era a fera dos “Quarenta Contos! Quarenta Contos!”, de Santo Antônio de Jesus.

Terminada essa missão, fui designado para fazer um estudo de barragem no rio Cariparé, tributário do rio Grande que por sua vez é afluente do rio São Francisco. Nesse estudo fizemos quatro ranchos na mata ou caatinga grossa. Gastamos 60 dias de estudo. A região era infestada de feras; como seja a onça, caititu e porco do mato, este era o terror dos mateiros. Andavam em varas, esfomeados, truculentos e ameaçadores. Quando encontravam um ser vivo, cão ou mesmo o homem, eles trituravam que ficavam apenas fragmentos de ossos.

Uma única vez à noite, fomos acordados pelo alerta dos trabalhadores para subirmos em árvores, onde passa todo o perigo. Mas felizmente foram embora nos deixando em paz.

Houve de tudo neste serviço, inclusive a parte romântica. Quando me queixei da falta de mulher, um dos trabalhadores me disse que a empregada foi mulher de vida livre. Tudo bem, só que a tal tinha pra lá de 70 anos com a face enrugada e castigada pela ação do tempo. Um dia chegando ao rancho ela me perguntou: “É verdade que Francisco me contou?”. Confirmei. Ela me disse: “Amanhã”. No outro dia cheguei na barraca, ela já me esperava com uma esteira velha no ombro e disse: “Vamos por ali”. E encontrou por uma picada até chegar a beira de um córrego perene que mais parecia um canal artificial. Suas águas cristalinas fluíam suavemente, borbulhavam na sinuosidade de suas curvas. A passarada aumentou o seu trinado e até a brisa no frescor do bucolismo daquela tarde aumentou sua suavidade como a festejar o acontecimento. Ela estendeu a esteira à margem do córrego e descerrou a cortina, o espetáculo apareceu: um corpo escultural digno de uma rainha. Lembrei-me até de Cleópatra quando saía de sua banheira láctea. O nome dela era Esteva, mas vou chamá-la de Cleó em homenagem ao país das pirâmides.

O segundo encontro com Cleó se deus alguns dias depois. Faltou carne e o engenheiro mandou matar um boi. Trabalhamos pela manhã e à tarde foi feriado da matança. Como tinha 12 peões, um engenheiro e um vaqueiro, eu peguei uma espingarda, botei uma bala de chumbo, pouco menor que um bola de gude e saí pra uma caçada na esperança de matar pelo menos um cititu ou talvez, quem sabe, uma anta de por de novilho. Naquelas matas, um turista matou um novilha do rebanho do coronel Cajazeira por engano.

Enquanto eu caminhava na mata ouvia os gritos da turma da vaquejada. Lá pra tardinha, como nada encontrei para descarregar minha espingarda entupida de chumbo, dirijo-me ao local da matança e encontro o engenheiro com seus 12 peões encima das árvores. No chão somente o vaqueiro montado num cavalo branco a esbravejar e blasfemar por ter perdido dois cachorros. Vaqueiro quando perde um cachorro é o mesmo que perder um filho. Perguntei: “Posso matar:” Com a confirmação, mirei num pequeno espaço entre a orelha e o chifre e disparei. Não deu outra, o boi titubeou e caiu. A turma desceu das árvores e foi tratar de esfolar, retalhar, etc.

Nesse momento me lembro de Cleó. Vi que eram muitos homens para pouco boi. Disparei em direção ao rancho onde encontrei-a nos afazeres domésticos. Agarrei-a pelos cabelos. Se fosse hoje cantaria: Pra não cair do seu galope. E na beleza desta hora o sol espera pra nascer.

Depois fui para o rancho descansar um pouco, jantar e dormir o sono dos justos, um sono tranqüilo pelo dever de uma missão cumprida.

Hoje, aos 82 anos, gostaria de me encontrar com o plantador de fumo para que me ensinasse a fórmula daquela “beberagem” para que a coisa fique assanhada, empinada e resistente como um bico de pica-pau amarelo para eu sair pelas estradas a fora cantando: “A vida é tão pequena para tanto amor!”. E depois assistir ao filme “Os Brutos Também Amam”.

Imagens: http://jogosdeluzesombra.blogspot.com/2007/07/clepatra.html; http://www.cofel.net/nossacidade/stoantonio.html

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